18.10.09

 

Tolices Brasileiras

Apesar da sua pequena relevância intrínseca, gostaria de tecer aqui duas ou três considerações acerca do episódio da actriz brasileira, Maitê Proença, que, na semana passada, alvoroçou parte da comunidade portuguesa.

Sentiu-se esta justamente despeitada com a suposta peça humorística em que aquela actriz zombava do paciente e generoso povo português, o mesmo que, para certa mentalidade brasileira, permanece amodorrado numa persistente e irredimível boçalidade, resistente a todo o impulso da roda da História e do Progresso.
Também fui ver a dita peça da infeliz actriz brasileira, que, na verdade, deixou ali uma péssima ideia da sua valia profissional, bastante meritória, diga-se, embora longe do excepcional.

Com efeito, a senhora pretendeu gozar com a nossa gente, que é também gozar com a sua, porque os brasileiros, gostem ou não, são uma invenção lusa, muito mais do que italiana, alemã ou outra, como por vezes parecem querer apresentar, pela atenção que lhes dedicam, em especial nas telenovelas de consumo popular.

Tudo aquilo que a desastrada senhora faz nesse vídeo é de uma pobreza artística confrangedora, assente na maior inanidade intelectual. Não fosse ela ter troçado de símbolos maiores da nossa e da sua cultura e o caso não ganharia tanto significado.

Mas a senhora ousou conspurcar nada menos que a bela e poética Sintra, na sua boca uma « vilazinha » perto de Lisboa, o Mosteiro do Jerónimos, a jóia rara manuelina que o senso artístico português legou ao Património da Humanidade, e até Camões surge chamado àquela mixórdia, imaginadamente humorística que ela vai enxertando no vídeo agora mostrado em Portugal.

O facto de ele se referir a um programa televisivo de há dois anos não lhe retira gravidade. Nele vemos ainda um grupo de elegantes mulheres brasileiras em airosa cavaqueira, todas tomadas de gáudio com a troça que Maitê faz de Portugal e dos Portugueses.

Ameaça, pelo visto, eternizar-se este vezo de os brasileiros invariavelmente troçarem de Portugal. A produção de inúmeras anedotas a este respeito parece ter-se tornado uma actividade extremamente popular por parte dos nossos putativos irmãos do outro lado do Atlântico.

Diz-se que este fundo de ressentimento contra Portugal vem do tempo em que o Brasil foi sua colónia e nessa qualidade tratada pela Metrópole.

Custa, na realidade, a aceitar que tenha perdurado até hoje tal ressentimento, porque a maturidade dos quase duzentos anos da nação brasileira já o deveria ter dissolvido, no conjunto da herança legada, que inclui, lembremo-lo, o território imenso, uno, coeso, indiviso, ligado por uma Língua culta e bela, assi mesmo reconhecida pelos maiores poetas e escritores brasileiros, uma religião, a católica, largamente maioritária, que lhe conferiu uma feição civilizacional semelhante à que na Europa resultou da contribuição cultural greco-latina e cristã, tudo isto deveria ter sido mais do que suficiente para relegar para segundo plano os factos negativos sempre associados, de forma desajustada, porém, a uma relação de país colonizador para com país colonizado.

Acontece que os actuais brasileiros mais azedados com a herança lusíada são os descendentes de portugueses e outros europeus, ou seja, os mais directos beneficiários dos privilégios dos colonizadores.

Se fossem os descendentes dos Índios, primitivos habitantes da terra brasílica e seus legítimos senhores, ainda poderíamos compreender certo fundo de animosidade, não completamente desvanecido, pelo choque e pelo esbulho territorial sofridos com a introdução no seu meio dos europeus, no caso, os portugueses, embora esta tenha sido sempre a sina das relações entre os povos, desde os mais longínquos tempos.

Por regra, os povos puseram-se em marcha em busca de terras, de riqueza e do desconhecido e os mais apetrechados culturalmente exerceram domínio sobre os restantes, uma vezes por aceitação voluntária destes, outras, talvez a maioria delas, pela violência, pela superioridade técnica das armas usadas, etc., etc.

Com o rolar dos séculos, a apreciação que se faz destes choques tem mudado. Assim, hoje, aqui na Península Hispânica, considera-se um bem a chegada dos Romanos, pelo seu legado civilizacional.

Coisa muito diversa deveriam os antigos Lusitanos ter achado, a julgar pelas guerras de guerrilha que lhes moveram, persistentes, que só o suborno e a traição de alguns companheiros do chefe dos Lusitanos, o lendário Viriato, permitiram aos romanos levar de vencida a tenaz resistência lusitana.

No Brasil, deve ter-se passado algo de semelhante com os Índios, que ali «dormiam» legitimamente o seu sono civilizacional, contentes com a cultura que tinham, numa prática de povos recolectores, caçando e pescando, quando tinham fome e dançando as suas danças, em honra dos seus deuses protectores quando os queriam invocar.

Até que apareceram uns barbudos que, admirados das suas vergonhas expostas, na linguagem pitoresca da célebre carta de Vaz de Caminha ao rei Manuel, sempre um Manuel, para despertar a ira brasílica, pretenderam civilizá-los, pô-los a rezar ao Deus verdadeiro, a trabalhar para benefício alheio, o que, compreensivelmente, não lhes deve ter caído nada bem.

Curiosamente, não são os descendentes destes povos que hoje hostilizam ou surgem a escarnecer dos portugueses, mas sim os seus continuadores na dominação, de quem os indígenas terão porventura ainda mais razão de queixa, pela contínua prática de exploração a que os têm submetido.

Enfim, já nos distanciámos algo da nossa patética Maitê, que, eu próprio, imaginaria intelectualmente mais dotada, já porque, dizem, escreve livros, coisa que exige reflexão, para além do domínio das regras gramaticais, coisa que certos brasileiros teimam em considerar como herança afrontosa, limitadora da sua fértil imaginação criativa, apesar dos numerosos bons exemplos dos seus compatriotas, que têm enriquecido o património comum da Língua, libertos dessa pretensa subjugação espiritual de origem portuguesa.

Resta-nos esperar que sejam os próprios brasileiros a dar-se conta do absurdo em que vivem, quando alimentam esses ressentimentos contra Portugal, terra de onde partiram aqueles a quem mais devem a sua existência cultural, onde existe uma generalizada simpatia para com o Brasil, comprovada numa presença bastante assídua de manifestações culturais brasileiras, na rádio, na televisão, no teatro, no cinema, em contraste com a sua quase ausência de reciprocidade.

Portugal gosta do Brasil, ainda que pareça tratar-se de um amor não correspondido, sente orgulho em ter criado aquela grande Nação e olha para ela com a indulgência natural de um Pai ante as irreflectidas ofensas de um filho, as travessuras praticadas em prova de afirmação de personalidade, sempre esperançado em que o avançar dos anos lhe traga a desejada sensatez, o equilíbrio das avaliações patrimoniais, para com ele se congraçar em verdadeiro gozo de mútua compreensão.

Desejemos, pois, que melhor inspiração caia sobre a cabeça desta elegante actriz brasileira, que aqui teve um péssimo momento da sua não despicienda vida artística, até associada a coisas portuguesas.

Vimo-la, com genuíno apreço, no excelente filme da adpatação do romance de Ferreira de Castro, A Selva, em que ela, no papel da insatisfeita D. Iá-Iá, contracena com o nosso então ainda nascente galã Diogo Morgado, no papel de Seu Alberto, moço letrado, expatriado, ali perdido na selva amazónica, comendo o pão que o diabo amassou, com a cabeça toldada pela insinuante presença de D. Iá-Iá, a nossa inefável Maitê, aqui ainda em plena posse dos seus melhores atributos.

Dizem-nos que Maitê está arrependida e já pediu desculpa aos Portugueses do seu desatinado acto. Esperemos que a declaração seja sincera e que o seu comportamento futuro disso mesmo nos convença.

AV_Lisboa, 18 de Outubro de 2009

Comments:
Caro amigo

Já que falou dos atributos dessa senhora, recordo-me das generosas fotografias que publicou na prestigiada revista Playboy. E não se ficou por generalidades, digamos assim. Deixou que o fotógrafo revelasse vários pormenores da sua "topografia" mais recôndita, ao ponto de quase se lhe verem as amígdalas, mas pela parte de baixo...

Falando a sério. O Brasil tem muito melhor em termos culturais. Esse tipo de humor, se é que merece tal classificação neste caso, não é a regra em dias de hoje. O Brasil é um país de futuro, embora já esteja a gastar por conta do petróleo que ainda não começou a jorrar. E tem muito boa gente, educada e com nível. Essa tal "de Maitê", não significa nada para ninguém em seu perfeito juízo.

Um abraço
 
Excelente artigo, em que expõe uma fragilidade cultural e um lamentável comportamento de Maitê Proença.
Não devemos confundir a floresta com a árvore, mas que foi uma atitude reprovável não existe a menor dúvida.

Um grande abraço!
 
Caro Amigo Fernando Vouga,

Saúdo a sua visita. Gostaria de acreditar na sua opinião de que o tipo de humor brasileiro trocista de Portugal e dos Portugueses estaria a desaparecer. Oxalá os factos venham a comprovar a sua impressão.

Um abraço.

AV_18-10-2009
 
Caro Amigo A.J.Faria,

Agradeço a sua visita e as palavras elogiosas aqui deixadas.

Sempre procuro não confundir a árvore com a floresta.

Infelizmente, no caso vertente, julgo estarmos perante muitas, demasiadas árvores, o que pode aproximar-se de uma floresta.

A nossa paciência e a nossa bonomia também têm os seus limites, sob pena de nos tomarem por parvos.

Um abraço.

AV_18-10-2009
 
Cheguei até aqui através de um comentário seu, a propósito de Caim, no fabuloso Sorumbático. Fascinou-me a argúcia da análise e o tom loquaz do discurso. Tinha de espreitar.

Sem desprimor para a brasileira em causa (que não me suscita qualquer simpatia nem tampouco sentimento inverso), aproprio-me da sentença do escritor para ilustrar o sentimento, não pela senhora, repito, mas pelo sururu causado por obra e graça(s) desta:
"que não se mencionasse o excremento".
 
Belo texto, meu amigo.
Pudessemos nós conjugar esforços.
Cumprimentos.
 
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